Contra o insucesso escolar (por Galopim de Carvalho)
Terminada a licenciatura, em 1961, e sem qualquer preparação pedagógica para o ensino, comecei imediatamente a leccionar, como segundo assistente, em aulas práticas. Nos últimos anos de uma cristalografia essencialmente morfológica, baseada nas medidas de ângulos entre as faces dos cristais, e no começo de uma outra, dita estrutural, a penetrar no âmago da matéria cristalina e fundamentada nos arranjos tridimensionais dos respectivos átomos, tive à minha responsabilidade as aulas práticas de Cristalografia e de Mineralogia, sob a orientação do titular da cadeira, então o Doutor Rodrigo Boto, um compêndio vivo nestas matérias. Com ele ganhei um gosto especial pelo estudo dos minerais, uma semente que, não tendo sido esse o ramo da geologia em que me orientei, guardei ao longo dos anos e que, mais tarde, deu os seus frutos nos vinte anos (1983-2003) em que tive a meu cargo o sector de Mineralogia e Geologia do Museu Nacional de História Natural da Universidade de Lisboa.
Os tempos eram outros e os jovens assistentes no departamento de Geologia da Faculdade de Ciências Lisboa, nos anos 60 e 70 do século que passou, eram preparados para prestar serviço na maioria das disciplinas da licenciatura. Da Cristalografia, Mineralogia e Petrologia, passando pela Geologia, Paleontologia e Geomorfologia, à Sedimentologia e Jazigos Minerais, quer em trabalhos práticos no laboratório e no campo, quer em aulas teóricas, em auditórios repletos de alunos, éramos conduzidos a uma visão eclética da ciência que dava o nome ao departamento.
Um tal ecletismo estava bem patente nas modalidades de doutoramento e de agregação de então que, para além das respectivas dissertações, incluíam provas teóricas e práticas incidindo sobre a totalidade das disciplinas da respectiva área. Como hoje, a par da investigação científica, os docentes universitários da minha geração criavam a sua própria pedagogia. Definiam os conteúdos das suas cadeiras, regiam-nas a seu modo e, no final do ano, examinavam os seus próprios alunos.
Ao iniciar funções docentes e, como disse, sem qualquer formação pedagógica, era minha convicção, interiorizada em adolescente, que era fundamental levar os alunos a encontrarem beleza nas matérias das disciplinas a meu cargo. Nesse sentido, desenvolvi um discurso que fui melhorando com a experiência e com o tempo que pude constatar que resultou e deu frutos. Quem ler os comentários de retorno relativamente aos textos, em moldes de lições escritas, que diariamente publico na minha página do Facebook, sabe que assim é.
Foi no convívio com um grupo de amigos eborenses, ligeiramente mais velhos do que eu, que “aprendi a gostar de saber”. Invulgarmente curiosos em muitas áreas do conhecimento, o Mário Ruivo, o Lima de Freitas, o Marcolino Galhardo Gramacho, o Júlio Roberto, o Henrique Leonor Pina e os irmãos David e Fernando Bragança Gil, todos eles figuras destacadas na nossa vida científica e cultural, iniciaram-me nesse gosto de saber. Com eles aprendi que havia beleza em todas as matérias integradas nos nossos programas escolares, mesmo naquelas que os alunos menos motivados achavam desinteressantes.
As outras chaves, que a experiência me ensinou, são a estimulação da autoestima e a consciência do dever cívico de estudar. Fundamental no binómio ensino/aprendizagem, compete aos educadores e aos professores conduzirem os alunos nesses três sentidos. Quaisquer que sejam as matérias em causa ou os níveis de escolaridade e etários dos alunos, estas chaves fazem deles alguém que tem gosto em aprender, que frequenta as aulas com prazer, encara o estudo como uma condição de cidadania, respeita a escola e se respeita a si próprio. Para tal, o docente tem de conseguir estabelecer com o discente uma aproximação de confiança e afectividade mútuas que, a par do cumprimento do programa escolar, lhe permita actuar com êxito nestas três vertentes.
Reportando-me à minha experiência de quarenta anos no ensino universitário, onde, por razões diversas, umas conhecidas, outras não, é frequente numa qualquer turma haver um, dois ou mais alunos menos motivados e visivelmente desinteressados das matérias em apresentação. Face a esses alunos, logo identificados nas primeiras aulas, adoptei uma estratégia que quase sempre se mostrou eficaz. Dava-lhes mais atenção, procurando estabelecer com eles um relacionamento de simpatia, que não era difícil transformar em amizade, e lhes tornava agradável a presença na sala de aula e o convívio comigo. Colocava-lhes problemas simples, ajudando-os, se necessário, a resolvê-los sem que se dessem conta dessa ajuda. Posto isto, elogiava-os na presença dos colegas, dava-lhes consideração e tratamento que acabava por os estimular a estudar e, assim, continuarem a merecer essa consideração. O resultado deste procedimento era, quase sempre, ganharem gosto pelas matérias (que são sempre bonitas para quem as conhece), pelo seu estudo e, sobretudo, a já referida autoestima.
Julgo ser possível alargar ao Ensino Secundário esta minha experiência na Universidade. No que diz respeito ao Ensino Básico, com turmas superlotadas, esta experiência suscita problemas sobre os quais seria interessante dialogar com os respectivos professores
“O poder do feiticeiro reside na ignorância dos seus irmãos tribais”. Trata-se aqui de um dito que, na nossa sociedade e no nosso tempo, nos adverte para o facto de que só o conhecimento nos defende na sociedade que estamosa viver.
É esta realidade que os professores devem fazer sentir aos seus alunos, em especial aos mais desprotegidos e atingidos pela exclusão social que grassa em tantas escolas marcadas pela suburbanidade crescente que caracteriza as sociedades desenvolvimentistas. É esta realidade que o professor tem de transmitir aos que o ouvem e leem. O Sistema promove e alarga o fosso entre os que estudam, e assim aspiram e conquistam o direito à cidadania, e os outros. E nestes outros estão os do trabalho precário, os marginais e a maioria dos sem-abrigo. É uma obrigação dos professores transmitir aos seus alunos esta mensagem, na batalha contra o insucesso escolar. Eles, os alunos, não sabem que estão a consentir serem vítimas de uma segregação a prazo, conhecida e promovida pelo Sistema, e é necessário que alguém lhes abra os olhos. E esse alguém, à falta da acção dos pais, tem de ser o professor. Não é fácil, mas não é impossível esta tarefa. Há que saber ganhar a confiança dos alunos e, também, o seu afecto. Feliz do estudante que gosta da convivência com o seu professor e duplamente feliz se esse professor estiver à altura do seu papel que, para além de educacional, é, também e sobretudo, social.
Galopim de Carvalho
- 2017-02-14 18:32:26